Pés

 

Estive doente durante estes dias. Agora, apesar de melhor, não me sinto plena. O frio insiste em arranhar-me a garganta e o dia-a-dia tem de continuar a ser feito. Nos últimos dias, fiz o mínimo necessário, isto é, fiz o necessário, quase tudo além disto é supérfluo. Ausente do mundo virtual, espantei-me com um fenómeno que me aconteceu e de que já tinha ouvido falar, mas, não tendo ainda acontecido comigo, parecia-me algo fantasioso, como o raciocínio de uma criança muito pequena, não vejo logo não existe.

Recebi um email de um estranho a manifestar a sua vontade em querer comprar fotografias dos meus pés. Devo dizer que fiquei admirada com o valor oferecido por cada fotografia. Recebi também várias mensagens elogiosas nas redes sociais sobre os meus pés, sobre a sua beleza e encanto, como se um fenómeno que não consigo explicar lhes tivesse colocado uns holofotes em cima. Isto é, enquanto as dores no corpo e a garganta inflamada me encolheram dentro de casa durante dias, os meus pés brilharam, ganharam destaque sozinhos por aí.

Reparei que tanto o email como os comentários e mensagens que recebi sobre os meus pés revelaram gentileza e educação do outro lado. Com isto, talvez possa concluir que quem tem este tipo de interesse são pessoas aparentemente gentis.

Não tenho nada contra este fetiche nem nada contra quem vende fotografias dos seus próprios pés e, em caso de necessidade, são apenas pés, as bases que nos permitem apoiar os movimentos das pernas, que ora são hospedeiros de fungos, ora têm pele de mel. Contudo, até que ponto não se tratará de prostituição dos próprios pés e até que ponto aquilo que consideramos irrelevante em nós pode ser prostituído: os pés, a boca, o corpo todo, a propriedade intelectual… Sim, a propriedade intelectual também pode ser prostituída. Cada um sabe de si, em que acredita, quais são os seus limites e os seus valores, e usa este anel invisível no seu dedo indicador do pé como bem entende, esquecendo-se dele pousado em qualquer lado ou nem o tirando para dormir.

 

Ana Gil Campos

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