Primeiro capítulo Lobos Sedentos da Respiração dos Dias
Quando
se começou a ouvir falar de uma possível pandemia pareceu tratar-se para muitos
de uma gota de chuva ainda sem nome num país distante, num país onde se guardam
com pinças verdades isentas de boas notícias. Quase ninguém quis realmente
saber, até que morreu dessa espécie de gota de chuva que não se via o médico
que a detetou e comunicou. Na altura, quem governa esse país de toalha branca talvez
tivesse pensado que se fechassem todos os habitantes em casa se acabaria com o
vírus ali, seria uma doença muda para o resto do mundo. Contudo, a globalização
é algo que nos serve a todos há muito e, como viajantes sem fronteiras,
transportamos memórias, bens de consumo, pessoas e vírus. Tudo mudou a partir
daí, como uma onda incontrolável que afogou vidas de repente por todo o lado.
Com isto, chegou a casa de todos a fuga, o isolamento, o medo, o sofrimento e a
solidão. Ninguém estava feliz, a ansiedade imperava dentro de cada um. Muito do
que nos era humano foi-nos retirado da cova das mãos por este vírus que ninguém
queria.
Com
o confinamento obrigatório, depois das primeiras semanas de saudade, chegou a
apatia. Era como se as pessoas desaprendessem a socializar. Até a forma como se
viram obrigadas a cumprimentar contribuiu para isso: ora com o pé, ora com os
cotovelos, pequenos murros desajeitados mão a mão, fazendo com que desviassem os
olhos para essas partes do corpo. Ou simplesmente não se tocavam e esta ainda
era a melhor forma de se cumprimentarem, com o olhar. Para alguns veio a lucidez,
libertaram-se de relações amorosas, familiares ou de amizade que na verdade
pouco lhes diziam.
A
pandemia foi gerida a nível governamental, e pela consciência de cada um também,
por etapas: nova esperança, retrocesso, perda de esperança, resignação, nova
etapa, nova esperança, consoante os picos, planaltos, descida de casos e
surgimento de nova variante que originava novo pico, mais medidas de contenção,
planalto e descida de casos, até que surgia uma nova variante e a descrença de
que tudo voltaria ao normal.
A
corrida de ambulâncias era constante e diária, as sirenes ecoavam temor. As
filas para a realização de testes eram longas e permanentes, o aumento de
internamentos levou ao colapso dos sistemas de saúde e as mortes eram em massa
e inevitáveis. Nunca se desejou tanto uma vacina o que levou a uma impaciência
geral de como era possível os cientistas demorarem tanto tempo a encontrarem
uma solução. Até àquela altura, poucos conheciam a complexidade e a necessidade
de tempo que o trabalho em laboratório necessita, as regras e diferentes etapas
obrigatórias por que tem de passar. Os cientistas receberam finalmente o
destaque merecido e o reconhecimento pela sociedade, nunca se viu tanto a sua
presença nos meios de comunicação eclipsando qualquer estrela do mundo do
espetáculo, naquela época sem palcos nem público. Mais tarde, quando se chegou
finalmente a uma fórmula da vacina eficaz e segura, muitos dos que a desejavam
não se quiseram vacinar por ter sido criada com celeridade, ainda sem tempo
para se saber se teria efeitos secundários a longo prazo, refutavam. É difícil
agradar.
Falta
de apoios económicos nunca houve, foi um dos poucos momentos da história em que
todos tiveram um interesse comum. Quando o novo vírus surgiu, almas mais
inocentes idealizaram como a humanidade se tornaria melhor, mais unida como um
harmonioso arco-íris em que as diferentes cores se acompanham ligadas, mas como
se vê no sorriso invertido do arco-íris foi apenas um engano, uma ilusão
cromática de que tudo seria mais belo. Logo no início, o preço das máscaras
disparou absurdamente devido à sua escassez, lá se foi a generosidade global; a
desconfiança entre as pessoas afastou-as ainda mais do que o afastamento físico
necessário; a poluição diminuiu, o céu estava mais azul e os animais regressaram,
mas luvas e máscaras descartáveis eram atiradas para o chão intoxicando o
ecossistema; elogios a países cujas medidas contribuíram para um controlo mais
apertado dos contágios eram contrariados no futuro próximo com críticas pelo relaxamento
das mesmas medidas que levava à disseminação do vírus e transmissão de novas
variantes e, assim, ora desciam ou ora subiam na posição mundial do ranking daquilo que pareceria ser a
avaliação do bom comportamento. Todos queriam voltar às suas rotinas de há
poucos meses, só não sabiam como. Os países, juntos numa onda, ou sequência de
ondas que os percorreu a todos, com mais ou menos piedade, que ora levava ao
encerramento ora à abertura de fronteiras, viram as vacinas chegar, mas não
para todos à mesma velocidade e quantidade. Para os mais pobres as coisas boas
demoram sempre mais tempo a chegar e são mais escassas também, e assim
começaram a surgir cada vez mais depressa novas variantes aos países ricos e,
afinal, contrariando todas as esperanças, o vírus já com uma árvore genealógica
considerável, foi ficando entre nós. O Homem tinha de se adaptar e adaptou,
cada pessoa à sua maneira.
Lobos Sedentos da Respiração dos Dias
Ana Gil Campos
Como comprar:
ou através do
Email acgcampos@gmail.com (os pagamentos podem ser efetuados por transferência bancária ou por MB WAY - 15 euros cada exemplar).
Comentários
Enviar um comentário