Torrada

 

Sempre que posso venho a sítios como este. Sempre que se marque um café farei para que seja em sítios assim, rodeados de plantas. Sei que é um apelo inconsciente do animal que somos, que nos leva para dentro da natureza, para casa. De onde veio a ideia irracional de nos racionalizar ao ponto de nos acharmos à parte do nosso próprio mundo?

— Achas belo? Isto à nossa volta — pergunto-te. — Este é um dos meus cafés preferidos. O que achas mais belo, estas plantas verdes por toda a parte, vasos de folhas longas, pequenas, suculentas, hirtas, moles, vivas, muito vivas, ou o cimento da estrada que passa ao lado deste vidro com árvores escassas a cada cinquenta metros pelo passeio?

— Também precisamos das estradas.

— Não estou a falar de praticidade, estou a falar de beleza.

Chega a torrada à mesa assim como a tisana de abacaxi e gengibre que tínhamos pedido.

— A torrada está queimada — dizes ao empregado.

— Não, isso é manteiga — responde ele.

— Não, isso é queimado, aliás, a torrada está queimada por toda a parte.

O empregado leva a torrada até ao balcão dizendo à colega que nos queixamos da torrada por estar queimada. Ouvimos um suspiro elevado atrás de nós e tenho a certeza de que, provavelmente, já não voltarei aqui.

— Provavelmente, esta será a última vez em que aqui venho.

— És radical.

— Já me conheço.

Entretanto, chega a torrada, mais rápida do que a última, não lhe deram tempo para se queimar. Está bonita, apetitosa, dourada, vê-se que é pão.

— Esta está com ótimo aspeto. Talvez voltes cá.

— Talvez. O que me espanta é um ser humano mentir descaradamente à frente de outro ser humano perante uma evidência. Vimos que a torrada estava queimada, tu afirmaste e eu concordei. Estava preta perante os três e o empregado diz-nos que o queimado era manteiga. Conheces alguma manteiga da cor preta? No menu, diz torrada com manteiga dos Açores.

— Sim, a manteiga dos Açores que conheço não se aproxima da cor preta, é bastante clara até, e o sabor… Acho que foi a referência à manteiga dos Açores que nos fez pedir a torrada. Tens razão, acho que não voltas cá.

— É pouco provável, acabou-se a magia. Há flores e vasos com plantas noutros lados, onde a verdade se funde por osmose na pele dos seres humanos. Se voltar cá, talvez seja por uma questão prática, porque todos os outros cafés estão fechados e estou com fome, por exemplo.

 

 

Ana Gil Campos

(próximo texto no dia 4 de outubro)

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