Estranhar

 

Poderia dizer que estranho rajadas de vento, o bolor verde num pedaço de pão esquecido entre um guardanapo de papel no porta-luvas do carro, uma palavra embebida em veneno seco, o amor lavado em euros ou dólares ou outra moeda qualquer, uma arma psicopata perdida em todas as direções, o arrepio de ouvir algo sem forma física, a maledicência cobarde para com uma criança, o engano e a calúnia costuradas com uma agulha nas costas quando em presença oferecem-se sorrisos como belas rosas espinhosas. Mas não estranho. Posso surpreender-me num primeiro momento, como um susto, e, logo a seguir sinto nojo, repulsa, medo ou revolta, e afasto-me, afasto-me sempre.

Estranhar é negar, não aceitar o outro como ele é, como se apresenta, mesmo que entre cortinas mais ou menos translúcidas, mas a verdade ergue-se sempre, incontestável pena delicada sobre o curso de um riacho, não se afunda, permanece leve e intacta. Digna. Estranhar é não aceitar e aceitar é necessário, permite ver e agir, antecede a denúncia, a ação, o afastamento. Caso contrário, desviamos os olhos, deixamos passar, preferimos estranhar mesmo que em silêncio, em vergonha própria ou alheia, sem ruído fora ou dentro de nós.

Noutra perspetiva, no oposto, está outra análise sobre a palavra estranhar. Estranhar aquilo que é defendido pelos Direitos Humanos, aquilo que nos defende, é negar o outro mais uma vez, a vida, só porque outra pessoa vê outros feixes de luz, usa palavras de outra maneira, faz escolhas opostas às nossas. Não se evolui estranhando aquilo a que não fomos habituados, aquilo a que não nos habituamos. Estranhar não deixa que o outro seja, e, quem sabe, não nos deixa ser também. Somos plenos quando aceitamos a estranheza do outro, quando a estranheza se dissipa, e, assim, passamos a vermo-nos com amabilidade. Aceitamo-nos com vénia.

Estranhar nunca é bom, é uma palavra que não quero para mim, ausenta-me da vida, vive-se em ignorância. Não me permite ver todas as cores, o tom de cada uma, limita-me enquanto ser humano, prende-me a espaços fechados, com um único corredor, uma única porta, sem janelas à volta. Sufoca-se. Estranhar é o mesmo que dizer que não somos todos iguais, mas, no mesmo espaço, com a mesma educação, os mesmos genes, sociedade na qual nascemos e crescemos, oportunidades ou limitações, experiências, talvez agíssemos de maneira similar, talvez fôssemos exatamente iguais como aqueles que estranhamos. Negar isto é estranhar a unanimidade da natureza do ser humano.


Ana Gil Campos

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